Gostava de repetir as palavras até à exaustão, ultrapassar o limiar em que significam algo, chegar às letras - ao som - ocas e vazias. Encontrava nesta manobra um refúgio da porcaria que lhe ia acontecendo, menos onerosa que o black out de uns copos de aguardente, ou de uma mão-cheia de hipnóticos. (À conta disso, tinha já ido parar ao hospital por diversas vezes, levou com tubos pela garganta abaixo, foi encafuado numa enfermaria com gente maluca... - não, isso nunca mais!)
Naquela hora incomodava-o a inutilidade que se sentia - e que era, vistas bem as coisas, que nem precisavam sequer de uma visão tão acurada, bem verdadeira; era mais do que inútil - era uma coisa invisível mas que custava e gastava ao planeta recursos tão necessários à sobrevivência das diversas espécies e da sua própria, num jogo de parasitanço infindável que, inevitavelmente, teria de findar. Este raciocínio era pesado por demais; contentava-se em sentir-se inútil, sem querer aprofundar a razão da coisa. Aliás, já nem se sentia inútil, de tanto ter repetido a palavra, as sílabas, os fonemas, o som... oco. O vácuo inundava-o e dava-lhe um bem-estar como não sentia há muito - como já não se lembrava de alguma vez ter sentido. Andava sem rumo pelas ruas da cidade, vendo mas não olhando, fazia-lhe impressão qualquer coisa que não sabia definir - seria a chuva miudinha? o vento que acordava por vezes? os pedintes a esticar a mão? os putos ranhosos que se julgavam gente? - enfim, vagueava em transe, perdido nas ruas e ruelas da cidade e da sua cabecita vazia de sentimentos e significados. Nunca lhe tinha acontecido chegar tão longe... estava mesmo em risco de se perder indefinidamente dentro de si, o nada que o preenchia era demasiado aliciante; chegavam-lhe ainda umas alucinações - memórias da vida que tinha (e que estaria prestes a deixar): o duplex no bairro in, decorado por quem percebia do assunto - enfim, um pequeno palacete, o automóvel que não era topo de gama mas pronto, a namorada que ia e vinha e ia e vinha, enquanto outras vinham e iam, o trabalho que lhe fazia cair todos os meses uma quantidade generosa de €€ - trabalho que fazia só porque era suposto, o health club que já fora terapêutico, os sítios que visitara, as putas que fodera,os jantares com a família nas alturas que tinham de ser...
"Inútil, inútil, inútil, inútil, inútil, inútil, iiinnnuuutttiiilllllll, --- --- --- --- --- --- ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------"
Pronto. Estava feito. Abandonara de vez o mundo. Mas, porra!, não teve o mundo a sorte de ele ter morrido... não, inútil mas parasita, num qualquer sanatório, até ao final dos seus dias, que se adivinhavam longos.
The empty threats of little lord - Sunset Rubdown
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