domingo, 28 de março de 2010

Dance of the sugar plum fairy



Breathe in, breathe out. Breathe in, breath out. In... out.

O corpo dela bailava suavemente ao sabor das inspirações que a arrastavam para cima, das expirações que a empurravam para baixo. Sentia-se, segundo a segundo, cada vez mais. Tomava consciência de si, imersa naquela água com odor a baunilha. Submersa, ouvia cada bater do seu coração, e, lá ao fundo, uma lista interminável de acordes e notas musicais que se sucediam de uma forma sublime. Não era grande fã de música clássica, mas lá se decidiu experimentar. E que melhor altura do que um encontro com si mesma? A luz tremelicante e fraca das velas teimava em alumiar a escuridão em que se sentia; essa escuridão, esse desassossego não eram acalmados pelo toque da água quente, pelo cheiro dos sais, pelo ar denso que nela entrava.

"Como sossegar? Como continuar? Onde estão as forças?"

Pontos de interrogação inundavam-lhe a mente, juntos com aquela música que amava pela primeira vez, numa dança neuronal inebriante que poderia ter apenas um desfecho... olhava as suas veias, dilatadas, sentia o sangue quente correr dentro de si, sentia a vibração da música, sentia-se no meio de nada, sentia-se no meio de tudo, sentia-se, queria sentir-se mais. A música em crescendo e o sangue quente a fugir dela, a música sempre mais alta e com mais força, alimentar-se-ia do néctar que escorria pela mão dela? O aço frio e cortante jazia no chão, molhado de água, de lágrimas e de sangue.

Breathe in, breathe out, breathe in, breathe...

Calou-se a música quando o corpo, pálido e sereno, se deixou descansar. De vez.

Dance of the sugar plum fairy - Tchaikovsky

terça-feira, 9 de março de 2010

Super massive black hole

Três horas que deveriam ter sido três dias. Listas e mais listas com dez, vinte, cem linhas, cem números, cem nomes, cem vidas. Um computador, duas mãos, duas cabeças e clicks, muitos clicks. Raios partam os clicks, falhas um e puff!, o trabalho que fizeste, bem, durante o ano, de nada vale.
E abre o programa, e vai à ficha do rastreio, e vê a data, oh carago, passaram dois anos e um dia entre os exames, já não conta... menos uma... o trabalho está bem feito, o cancro está afastado por ora, a senhora (que é um número...), é saudável e esperemos que assim continue, estou cá para isso, para ajudar e ensinar a viver o melhor possível, a evitar as mazelas que sabemos poderem ser evitadas, a descobrir cedo aquelas que sabemos que aparecem (mais frequentemente do que "de vez em quando") e a atacá-las pela raiz, a tratar e minimizar os estragos que algumas, invariavelmente, causam, a optimizar a qualidade de vida e a saúde de quem a nós recorre.

Pois. Tudo fazemos para ser bons. Aceito (e é inegável) que avaliem aquilo que eu faço, como faço, quão bem faço, as falhas que tenho, os erros que cometo. Aceito, porque é fundamental para melhorar o meu desempenho. Agora, não aceito, e revolta-me, provoca-me náuseas cá mesmo no fundinho, que me avaliem cegamente, critérios rígidos quando a ciência o não é, porque dois anos são iguais a dois anos e dois dias, porque a consulta do senhor com tensão alta estava marcada mas ele faltou, ou veio só no início do ano seguinte, porque a senhora com diabetes fez o raio da análise a dois de janeiro e não a 31 de dezembro, porque a senhora que "não cumpriu o rastreio do cancro do colo do útero" afinal já não tem útero, pois é... porque a senhora que não faz mamografias há sei lá eu quanto tempo afinal já não tem mamas...

A imposição de uma máquina "cega" que nos avalia tem de, necessariamente, nos fornecer instrumentos que nos permitam dizer "isto não está feito porque...", não pode assumir instantaneamente que "aquilo não está feito e ponto final, temos pena" - ou não, que as máquinas não têm sentimentos, e muito menos os têm os senhores que por trás delas estão.

Perdemos tempo, demasiado tempo, demasiada energia a lutar contra estas merdas. A tentar fazer sempre o melhor - que nunca o é, se és bom tens de ser óptimo, se fazes 100, ai tens de fazer 150 pra próxima! É cansativo. Perdemos-nos algures no caminho. Eu, pelo menos, perco-me. Entre as listas, os nomes, os monitores, as letras, os códigos, os clicks. E a pessoa de que devo cuidar? Bom, desde que tenha todos os clicks nos milhentos sítios certos, ok... Mas confesso que, entre tanto click e "desclick", entre tanto vai e vem, por vezes me esqueço dela. A pessoa passa a número, a estatística, facilmente - demasiado facilmente. Onde está a essência da Medicina? Longe, muito longe disto, julgo.

Primum non nocere... A eles, que precisam de nós; e a nós, que precisamos de estar bem (ou menos mal) para deles cuidarmos.

(Tirem-me deste filme!!!!)


Super massive black hole - Muse